O LIVRO EM PAPEL NÃO DESAPARECERÁ

O LIVRO EM PAPEL NÃO DESAPARECERÁ

Há uma década, escolhi a Editora CRV para publicação dos meus livros. Nesse período, somamos 13 títulos. A opção pelo livro físico expressa o posicionamento de quem reconhece que “a escrita é política”, como afirmou Jacques Rancière. Com a palavra impressa, enunciamos, anunciamos, denunciamos e transformamos realidades. Individualmente ou como integrante do coletivo de autores Insopitáveis, faço da palavra escrita a expressão do mundo que me atravessa e, por intermédio das letras grafadas no papel, desejo contribuir para a mudança do mundo que passa dentro de mim.

Na tese de doutorado em Ensino de Leitura e Escrita, dediquei-me ao estudo dos letramentos de Carolina Maria de Jesus, uma escritora negra, pobre e com pouca escolarização formal. Carolina conhecia o poder da palavra escrita, registrando em diários o seu cotidiano. Quando ameaçada de despejo, situação recorrentemente vivida por ela, usava a escrita como modo de autodefesa, dizendo que escreveria, no seu diário, os nomes de quem a ameaçou. Com a grafia da palavra, Carolina conseguiu dar ordem ao caos da desordem social brasileira, resultando no seu primoroso livro Quarto de despejo: diário de uma favelada, publicado em 1960.

A exemplo de Carolina, escrevemos para denunciar ou anunciar, matar os dragões ou festejar a vida, apontar caminhos ou revisitar outros previamente trilhados; fazemos do livro impresso a nossa escolha afetiva. Ao longo das últimas décadas, assistimos ao desaparecimento dos CDs de músicas, mas elas continuam sendo escutadas nas plataformas virtuais. Os DVDs de filmes deixaram de ocupar as estantes, mas as opções audiovisuais se multiplicaram nos aplicativos de streaming.

Na contramão das outras tecnologias, o livro digital não se popularizou na mesma velocidade, porque a relação com o livro em papel é diferente. Na leitura do livro físico, usamos o tato, como bem constatou o filósofo Byung-Chul Han: “É a mão do dono que dá ao livro uma cara inconfundível, uma fisionomia.” Apesar de práticos e econômicos, os e-books não se coisificam; não guardam histórias e anotações em suas margens; não têm idade ou local; a sua arte não é percebida; e a textura das suas páginas não é tocada quando as folheamos. O sentido humano do tato não conseguiu ser replicado na versão digital do livro, enquanto a audição e a visão continuam atuando com as mesmas funções nas tecnologias on-line de distribuição de músicas e de filmes. “Sem o contato físico, não se formam vínculos”, conclui o referido filósofo sobre o que sentimos quando temos um livro em papel nas mãos.

A relação com o livro físico é também erótica, lembrou-nos Maria Gabriela Llansol, sobre quem escrevi no livro A existência em ruínas (CRV, 2019). Segundo essa escritora portuguesa, levamos o livro físico para a cama e com ele transacionamos, em relação íntima, fazendo da leitura “uma espécie de sexo”, para depois fazê-lo repousar sobre o corpo que divaga em pensamentos e sentimentos.

O fato é que temos razões para festejar a perenidade dos livros em papel, comemorar a batalha das editoras para a sua longevidade, para os avanços na qualidade estética de impressão, para a ampliação dos meios de circulação do livro por todas as regiões, apesar de ainda estarmos longe de uma verdadeira festa de democratização da leitura no Brasil. Precisamos demandar dos governos – federal, estadual e municipal – a real implementação de políticas públicas do livro, da leitura, da literatura e da biblioteca para que possamos mudar o triste cenário de inacessibilidade ao livro em nosso país.

Francisco Silva Cavalcante Junior
Francisco Silva Cavalcante Junior

É Ph.D. em Ensino de Leitura e Escrita pela University of New Hampshire, psicólogo e professor do Instituto de Cultura e Arte (ICA) da Universidade Federal do Ceará. Ganhador do Prêmio ILÍMITA 2005 de Fomento à Leitura concedido pela UNESCO.

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